Dossier de Exploração- 3ª Fase Tangencia(i)s- Reflexões gerais sobre o presente e explicação de algumas referências utilizadas
Reflexões dos diversos espaços
Através do regresso ao meu lar compreendo diversas alterações não só no mesmo, como também na minha própria individualidade. É neste processo de retorno que inicio uma nova postura ao observar o que me envolve.
Ao colocar-me nos diversos espaços desta casa vou percebendo e analisando as diversas mudanças.
É neste sentido, que rapidamente percebo que a sala, que anteriormente se caracterizava pelo meu principal espaço de conforto transformou-se num lugar que me inquieta e agride psicologicamente. É ao situar-me neste local que um tremendo cansaço me envolve. Ao observar a energia constante e as diversas interações entre as pessoas ou mesmo com a própria tecnologia (que por sua vez perdura ligada), sinto uma imensa fadiga que me abraça e me agride, de tal maneira que me torno incapaz de refletir sobre os objetos e as próprias memórias a que estes me transportam... Neste seguimento, oiço a voz de Álvaro de Campos (heterónimo de Fernando Pessoa) e identifico-me com a segunda estrofe do seu poema “Cansaço”, tornando-se evidente nestas palavras a semelhança com os meus próprios sentimentos. É quando refere:
“A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém,
Essas coisas todas-
Essas e o que falta nelas eternamente-;
Tudo isso faz um cansaço.
Este cansaço,
Cansaço.”
Deste modo, atento a minha irmã neste local, que em vez de aproveitar o seu tempo livre para se construir, para pensar e observar o mundo que a rodeia, que tanto tem para nos dar, mantém uma postura constante de indiferença e irracionalidade. Passa o seu tempo a ver com o seu namorado, estes programas tão superficiais, tão pouco educativos. Neste sentido, apesar da minha capacidade de refletir me abandonar, continuo apta para criticar esta tamanha futilidade que me envolve, que deteriora o meu próprio pensamento e autoanalise. Contudo, apercebo-me de alguns sinais que evidenciam a minha mudança, principalmente quando verifico o meu desejo de fugir deste espaço, de partir e apenas voltar quando a tranquilidade regressar. Compreendo que já não sou capaz de me manter insensível ao que me rodeia, já não sou um simples ser indiferente neste mundo, mudei. E desejo que os que me rodeiam também mudem, se transformem em seres preocupados como cidadãos ativos na sociedade.
Neste seguimento, observo o meu irmão que se mantem agitado diariamente. Não para, não investiga e não atenta a realidade que o abraça e procura a sua atenção. Este ser mantém-se eternamente ligado à tecnologia, aos diversos jogos, correndo apressadamente num ciclo vicioso, da televisão, para o computador e ,de seguida, para a playstation. Penso que se a minha mãe não estivesse presente passava a sua vida neste processo. Vive fechado num universo irreal, preso à ficção, tornando-se num ser obsessivo e por vezes violento. Ao analisar os seus comportamentos atuais, sinto saudade do meu irmãozinho, que apenas regressa quando é obrigado a distanciar-se da sua fixação.
Concluo que atualmente a maioria das crianças têm atitudes idênticas, não se contentam com uma tarde sem a utilização de tecnologias provenientes do desenvolvimento da sociedade. Tentam crescer rapidamente, esquecendo-se que a infância será a melhor fase das suas vidas... o tempo em que têm a oportunidade de se desenvolver e crescer como futuros cidadãos dinâmicos da humanidade.
Questiono-me sobre todas estas atitudes superficiais e obsessivas que são despertadas pelo desenvolvimento tecnológico global. E interrogo se será mesmo benéfico para a população tamanho crescimento científico, se ,por sua vez, este transforma a maioria dos cidadãos em seres autómatos, máquinas manipuladas que não observam, que apenas procuram a eficácia e a rapidez, estando constantemente presas a uma cela em que os ponteiros do relógio se transformam nas próprias grades.
Sinto que a minha família se assemelha a estas formigas frenéticas, estes seres viciados pelas tentações constantes que nos rodeiam.
E parece que oiço a voz de Saramago, que em “As Pequenas Memórias”, refere ironicamente “sendo eu um sujeito do mundo, também teria de ter, ao menos por simples “inerência de cargo”, sede de todos os desejos e alvo de todas as tentações”. É com esta expressão que o escritor critica diversas atitudes fracas sem qualquer reflexão ou preocupação pelo enriquecimento da sociedade. Identifico o meu pensamento com a sua ironia, sendo que vejo os diversos seres da minha própria família neste papel, deixando-se manipular e influenciar pelos diverso vícios e tentações que consomem a sociedade atual.
Procuro que se distanciem e autoanalisem, que cresçam e se tornem em seres mais maturos conscientemente.
E de repente ao mudar para a cozinha e observar que até durante as refeições a tecnologia permanece presente, sinto uma tamanha frustração e irritação, que anteriormente não me envolvia. Critico novamente determinadas atitudes, porém, desta vez é algo que abrange um conjunto de seres e não apenas um indivíduo particular. Condeno esta postura, sendo que este é o único instante em que estamos todos unidos, capazes de comunicar e dialogar. Em vez disto, transformam-se em seres automáticos e sozinhos.
Recordo que também já fui assim, principalmente em criança quando me deixava influenciar pelo som e imagem que me transportavam a uma realidade de ficção. E neste seguimento, percebo que os indivíduos que integram a minha família se mantém presos a esta característica infantil, sendo seres imaturos e insensíveis, e que não procuram crescer e desenvolver o seu próprio pensamento.
Concluo que para obter a minha tranquilidade necessito que os elementos constituintes da minha família também mudem, que comecem a observar e a sentir curiosidade pelo que os rodeia. Tornando-se em seres livres das amarras que os escravizam e manipulam.
Consecutivamente, compreendo ao relembrar diversas memórias passadas para a compreensão do meu percurso enquanto ser humano, que é necessário não só manter determinadas características inerentes ao que fui, como também abandonar outras que nos prendem e não permitem o nosso próprio desenvolvimento.
Deste modo, observo o dia em que o meu pai regressa para o seu trabalho em S. Paulo, do outro lado do Atlântico. Constato a calma que de repente, apenas por um dia, a minha casa possui. Contudo, não admiro nem contemplo este sossego devido à tristeza que lhe está inerente.
É neste vazio que me apercebo que já sou capaz de refletir, de desenvolver o meu pensamento num processo de infelicidade atroz.
Começo a investigar e interrogar o que o meu pai sentirá sempre que regressa ao seu lar português, se poderei identificar o seu regresso com o meu. Será que este ser humano ao voltar à sua origem se apercebe da constante mudança que lhe inere individualmente e à própria casa em questão?
Nunca tinha raciocinado sobre este acontecimento anteriormente. Porém, apercebo-me da alteração evidente da minha mãe, que sem o seu companheiro se transforma num ser ainda mais carregado de responsabilidades e preocupações.
Relembro Saramago novamente. No entanto, desta vez é o seu livro “Memorial do Convento” que se insere no meu pensamento. É no episódio da “Epopeia da Pedra”, em que o caprichoso rei obriga diversos homens do povo, a transportar uma pedra de extremo peso, provocando algumas mortes. Nomeadamente a de Francisco Marques, símbolo de abdicação da própria vida apenas por uma vontade súbita do rei.
É neste sentido que analiso e critico não só os meus irmãos como também o meu próprio ser. Todos nós que através do nosso egoísmo e atitude impulsiva, colocamos tanto peso na nossa própria mãe, que não pensamos nas constantes preocupações e aflição que lhe causamos. E é deste modo, que nos identifico com o próprio rei D. João V, ser teimoso que não se interessava pelos danos provocados para alcançar os seus objetivos.
Devemos mudar, e deixar de transformar a minha mãe num ser semelhante ao povo que tanto peso possui e tanta abdicação é obrigado a fazer.
Em suma, é através dos diversos espaços da casa que sou capaz de criticar, condenar diversas posturas insensíveis, e refletir sobre a minha própria atitude.
Consecutivamente, ao mudar novamente de espaço e colocar-me no terraço, observo a pequena amostra da grandiosidade da natureza que nos é superior. Considero que a natureza é a única realidade que supera o poder do ser humano, sendo impossível de a questionar . É algo que desde pequena contemplo e observo com espanto. Contudo é a sua superioridade que transforma o ser humano num “bicho da terra tão pequeno” tal como Luís Vaz de Camões refere no Canto I dos “Lusíadas”, refletindo sobre as infinitas limitações físicas do ser humano e sobre a sua própria dimensão que se torna ínfima perante a mãe-natureza. Deste modo, julgo que sou um ser minúsculo neste mundo, que no entanto, através das minhas capacidades racionais e de observação atenta, me altero e transcendo, transformando-me numa pessoa insaciável, com um imenso desejo de experimentar, criticar e mudar o mundo para algo inovador e melhor. Desta forma, o “bicho da terra tão pequeno” que em Camões é limitado, e manipulado pela força do meio natural , consegue superar as suas capacidades, interrogando e mudando o seu pensamento consoante as diversas experiências vividas. Alcança assim, um enriquecimento superior ao próprio ambiente que o rodeia.
Em suma, considero que esta minha alteração do modo de pensar foi e será benéfica para mim e para os seres que me rodeiam. Felizmente regressei daquele curioso não lugar, observando claramente situações e comportamentos que nunca tinha percepcionado antes.