Dossier de Exploração- 3ª Fase Tangencia(i)s- O Meu Quarto
O Meu Quarto- Síntese das ideias e memórias descritas presentes no Caderno de Escrita
Ao regressar a casa apercebo-me que apenas o meu quarto, onde o azul predomina e a desarrumação perdura, poderá ser um lugar onde posso refletir e recordar o passado sem obstáculos, assemelhando-se ao “instante decisivo” de tranquilidade do não-lugar experienciado anteriormente.
Este é a primeira divisão da casa em que integro o meu ser. Começo um processo de autoanálise e descoberta, identificando-me constantemente com determinadas expressões e pensamentos de Saramago em “As Pequenas Memórias.”
E observando os diversos objetos que aqui permanecem compreendo a imensa dimensão afetiva que os compõem.
Ao atentar as diversas medalhas adquiridas, um pequeno frasco de perfume, o Santo António, os distintos objetos artísticos, os presentes feitos manualmente e recebidos, as fotografias antigas e finalmente, a janela que permanece no meu quarto , recordo distintas memórias de infância. É neste procedimento que uma imensa saudade me envolve e desejo voltar ao outrora, à criança inocente e curiosa que fui, assemelhando o meu pensamento a Saramago quando no seu livro refere que “tudo voltaria a ser o que foi se nela pudesse voltar a mergulhar a minha nudez de infância, se pudesse retomar nas mãos o que tenho hoje.”
Neste sentido, começo por visualizar as diversas medalhas e diplomas que recebi, transporto a minha alma para um passado mais recente, entre 2005 e 2011, quando andava na alta competição de ginástica acrobática no Ginásio Clube Português.
Recordo as competições, os treinos, onde a pressão e a preocupação em ser a melhor eram uma constante do meu dia a dia. Na altura, apenas me importava com a opinião de duas treinadoras, e com as obrigações e obsessões que estas me imponham. Era um ser autómato, quase uma máquina manipulada, que não questionava nem interrogava o que me cercava. Todas as lesões, todos os comprimidos tomados às escondidas e todas as horas em fisioterapia eram um simples meio para alcançar um fim.
Contudo tudo se alterou, tive de desamarrar a minha infância das correntes que a prendiam, iniciando pela primeira vez um processo de autoanálise.
Atualmente ao recordar o tempo em que o meu crescimento imobilizou, autocritico-me, arrependendo-me de diversas atitudes que tomei. Porém, considero que uma pequena parte do que era evoluiu até ao presente, transformando-me num indivíduo mais forte e capaz de ultrapassar diversas dificuldades.
Neste seguimento, abandono a memória anterior e observo o pequeno e elegante frasco de perfume que pertencia à minha avó materna, uma composta e excelente senhora. Recordo através da fragrância que ainda permanece no objeto, a sua amabilidade e perfeccionismo em tudo o que fazia. Parece que ao capturar este aroma que o seu espírito e a sua alma regressam e envolvem o meu quarto. Volto a um passado em que esta estava presente fisicamente na minha vida, observando a alegria do seu lar (onde também vivi) e de toda a família unida. Todavia, este espaço de conforto e felicidade teve de ser abandonado após a partida dos meus avós. E é ao recordá-lo que sinto uma emoção desmedida ,uma imensa saudade e uma infinda satisfação, sendo que (tal como Saramago afirma) “pelo poder reconstrutor da memória , posso levantar em cada instante as suas paredes brancas. ”
Consecutivamente, ao voltar a observar o único espaço desta casa onde o meu conforto tem um lugar, atento os diversos objetos artísticos, que tiveram a minha intervenção manual de certa forma. Compreendo que todos estes elementos me completam e permitem uma viagem ilimitada ao passado. Contudo, é principalmente ao observar o Santo António aqui presente que volto a ser capaz de visualizar o meu avô materno, que grande influência teve no rumo que segui até hoje. Foi devido a este grande senhor que o meu gosto pelas artes e literatura foi despertado.
Por ser uma criança curiosa e bastante irrequieta, foi ao trepar para o telhado do terraço do meu avô que caí e acabei por partir a estatueta deste santo, que o meu avô tanto admirava. Como castigo, este fantástico senhor “obrigou-me” a restaurar o estrago feito com a sua ajuda. E foi neste acontecimento que um espantoso momento de aprendizagem e afetividade foi concebido.
Posteriormente, quando o meu querido avô faleceu deixou em meu nome este objeto... e apenas no presente é que fui capaz de o observar atentamente e relembrar esta memória que há muito se encontrava encalhada nas profundidades do meu ser. Parece que ao observar estes objetos que integram o meu quarto e refletir sobre os mesmos, o meu avô volta e me acompanha neste processo. E apesar do meu sofrimento pela sua partida, tive de compreender o pensamento de Saramago, quando este ao relembrar as suas memórias (tal como eu) recorda pessoas que já abandonaram a sua vida e refere “As coisas são o que são, agora se nasce, logo se vive, por fim se morre, não vale a pena dar-lhe mais voltas.”. Contudo, não consigo deixar de sentir uma eterna nostalgia por todos os que me deixaram... Agora “sou eu o único que pode recordar” todos os momentos passados.
Seguidamente, ao observar os presentes que me foram dados e feitos manualmente no Natal, recordo as épocas festivas em que toda a família se unia e respeitava mutuamente. Revivo a ansiedade e felicidade sentidas na altura em que todos os grandes pilares do agregado familiar que constituo eram vivos. Todos os teatros, concertos e atuações de dança feitos pelos dezoitos netos da minha avó paterna atribuam alma e energia ao Natal.
No entanto tudo isto desapareceu quando a base deste agregado familiar partiu e o respeito mútuo foi sobreposto às pretensões económicas.
Neste momento, apesar da alegria que pertence ao outrora sinto uma imensa tristeza pela atitude recente de determinadas pessoas que tinha em consideração. É através desta memória e reflexão que compreendo o modo como a ganância e cobiça manipulam e influenciam tantos indivíduos, nomeadamente pessoas que pertencem à minha família.
No presente a minha família paterna mantém-se numa constante degradação, apenas me restando as memórias profundas que se sobrepõem na minha alma.
Ao afastar-me desta tristeza observo as diversas fotografias em pequena e recordo a altura em que vivia no Porto, em que a minha admiração pelo mar e por velejar foi despertada. Revivo também o tempo em que o meu prazer pela contemplação dos cavalos foi estimulado. É neste momento que parece que vejo novamente as letras escritas por José Saramago, que em pequeno tinha uma enorme vontade de montar cavalos contudo tal desejo nunca foi concebido fisicamente. É quando regista que “a única verdade é andar eu ainda a sofrer dos efeitos da queda de um cavalo que nunca montei. Por fora não se nota, mas a alma anda-me a coxear há setenta anos.” Que me identifico com o escritor, sendo que também sempre aspirei praticar hipismo, no entanto esta vontade tratou-se de um simples instante, que em Saramago nem sequer aconteceu.
É também neste espaço físico que forma o meu quarto que através da janela observo as diferentes vivências desta rua, que pouca agitação possui. Recordo quando vivia no Porto e curiosamente também observava as diferentes pessoas que passavam através da janela ,com elevadas dimensões, integrada na sala. Permanecia neste local horas sem brincar mas sim a observar e analisar as diferentes expressões e vivências das pessoas. Há quem me possa considerar um ser cusco e bisbilhoteiro, contudo eu sei que não era (nem é) essa a minha intenção. Apenas admirava todo o processo de investigação e imaginação, do que seria a vida dos indivíduos que atentava. Apenas o fazia naquele lugar, naquele instante. Verifico através desta recordação, que esta minha característica de curiosidade foi algo que teve lugar não só naquele momento e local passado, mas também no presente e no espaço que compõe o meu quarto.
Em suma, todas estas memórias que recordo no meu quarto e que enaltecem alguns seres que me influenciaram no que sou hoje, permitem-me uma viagem ilimitada e uma descoberta sensível do que me tornei. Ao refletir e recordar diferentes histórias sou capaz de me autoanalisar e criticar. Consigo, deste modo observar todos os erros cometidos e todas as atitudes obsessivas e escravizadoras que tive.
No entanto, é também ao reviver o outrora que um momento de espanto e nostalgia me envolve. Compreendo que a recordação de todos os desacertos que realizei é importante para a construção de um novo ser que ainda hoje, com os dezoito anos que tem, ainda muito tem por desvendar e revelar, e que este procedimento será uma constante para o resto da sua vida.